Discutindo com
Laís
Lembro-me muito bem quando eu encontrei Laís pela primeira
vez. Lembro-me muito bem porque toda vez que encontro Laís, ela me lança um
olhar divertido, finge raiva e depois arregala aqueles dois olhões de coruja
para mim. Depois solta um sorriso manso, ou afetado, depende se estiver
chovendo ou ensolarado, segura meu braço com força e me puxa para perto e para
longe. “Puxa como você é chato, puxa como você é chato” diz com sua vozinha, me
apertando e balançando a cabeça, de maneira divertida.
Encontrei Laís dos olhões de coruja numa livraria. Olhava
divertida para as pessoas que passavam e não a notavam, pequenina, num
cantinho, só olhando as pessoas que não a notavam. Pareceu embaraçadamente
surpresa quando a encontrei em seu pequeno deleite especial. Arregalou-me os
olhos de tal maneira que sorri. Estava eu procurando um livro sobre algum
assunto desinteressante, como Laís explicou-me, logo depois que eu respondi a
pergunta do que você veio fazer aqui nesse meu cantinho de olhar pessoas?. Desinteressante
e chato. Repetitivo, quando tentei lhe explicar as qualidades do autor, Tolstoi
já tinha escrito sobre, e muito melhor, reiterou, batendo seus pezinhos,
impaciente. Apertou-me o braço, com força, e me puxou para perto e para longe.
“Puxa como você é chato, puxa como você é chato”, disse, finalmente. Mas depois
deu um sorriso e me perguntou se eu já tinha visto alguma borboleta hoje, mas
como não se hoje o jardim da praça está cheio?, após minha negativa. Parou um
pouco para pensar, soltando meu braço, e suspirou. “Como você conseguiu me ver,
observando as pessoas, e não conseguiu ver nenhuma borboleta? Você deve ser
meio cego, deveria procurar um oculista”. Foi assim que conheci Laís.
Depois disso, a encontro diversas vezes por ai, de repente. Tentei muitas
vezes, frustrado, entrar em contato com ela por outros meios além do físico
presencial. Mas ela sempre se nega a conversar comigo quando não consegue me
arregalar os olhões de coruja. Ignora-me, então, em todos os locais ou meios em
que nós dois não estejamos parados, olhando um para o outro, e ela aperte o meu
braço e me sorria, e eu sorrio para ela de volta e ela vem, e me puxa para
perto e para longe. As vezes tenho imensa raiva dela por isso, por não querer
me ver outros dias, em outros lugares, com outras pessoas. Porque não vamos com
Bruno e Fernanda para o cinema juntos, Laisinha?, digo, mostrando o novo filme
em cartaz. Porque você é tão bobão e sempre acha que eu não gosto de você?, me
responde, provocativa, mudando de assunto logo em seguida. Porque você nunca me
vê com os outros? Porque só me vê sozinho?, você deveria estar feliz por eu te
ver uma vez que seja, seu chato!. Eu queria te ver mais..., digo depois de um
silêncio desconfortável, eu gosto de te ver, gosto de você. Ela para, vira e me
dá um olhar assustado, misturado com certo desconforto de mesma origem do
silêncio desconfortável, Eu também gosto de você, diz, e não foge do meu abraço
carinhoso, mas foge dos meus olhos curiosos.
Um dia, mais cinzento que muitos, eu estava especialmente insistente. Ela
olhava para as árvores, estávamos em uma varanda bem aberta, dando para árvores
e para o todo especial cheiro de ar do outono carioca. E seus olhos de coruja
passeavam pelo verde como que procurando algo. Não tinha falado mais que poucas
palavras, escutando o longo discurso meu, remoído, cheio de só queria te
entender melhor, as vezes acho que você poderia se abrir mais, junto com uns o
que há com você hoje?, e ocasionalmente uns suspiros e o discurso morria sem
avi...
“Porque você insiste tanto em mim?” perguntou finalmente, evitando meus olhos
inquisidores espanhóis. Entalou-se em mim a resposta, e não consegui falar nada
por alguns minutos. Aqueles olhões de coruja, aqueles faróis negros
acastanhados de onde a emoção explodia. Que medo daqueles olhos. Que medo de
serem espelhos, e não vidros translúcidos. A tensão ficou mais forte, e ela, ao
contrário de outros dias passados, não mudou de assunto, tampouco falou sobre o
passarinho a cantar, metros abaixo, já que a varanda era de um prédio alto,
metros acima de passarinhos a cantar. Não, Laís aquele dia não me apertou o
braço, me apertou o coração. Céus, aqueles olhões de coruja, aquela boca
tremida sem a certeza, e a expectativa. Séculos se passaram, e ela desviou o
olhar, virando para o ar outonal.
“O que você acha do tempo?” perguntou, finalmente e vendo
minha decepção, sendo a boa observadora de sempre, que bonita Laisinha,
acrescentou “Não, não o clima, ou a temperatura, ou, mas o tempo, o tempo!”
afirmou, com sua energia contagiante. Mas eu não estava a fim de discutir o
tempo aquele dia, o que a fez começar, naturalmente, a falar sem parar sobre o
assunto.
“Imagina, imagina! Imagina se, na verdade, não existe tempo?
Não existe o passado, não existe o futuro. Não existe nada, e nossas memórias
são só fantasias da nossa mente? Na verdade, o que há são momentos. Como
fotografias. Momentos que vão e vêm. Mas, assim como no cinema, não há real
continuidade, não há movimento. O movimento é uma mera ilusão da nossa
incapacidade biológica de ver mais de 24 quadros por segundo, devido a tal
persistência retiniana. E, como no cinema, a filmagem pode ser editada,
cortada, na pós produção, nossa memória também o pode. O que seria o tempo,
então? Uma medição que o Grande Cineasta usa para colocar seus momentos? Uma
criação nossa, para evidenciar a diferença entre um momento ou outro? Mas, como
saber que um segundo de agora, na realidade, não é um segundo posterior de
amanhã, ou é um segundo do século passado?” terminou, olhando para mim, e
brilhando os olhos, esquecendo dos segundos do século passado que tinham
acabado de passar, nos quais eu olhava seus olhos de coruja e sua mãozinha
apertava não meu braço, mas meu coração.
“Se for isso, espero que o Grande Cineasta não seja um
Tarantino” respondi, amargo. Aqueles segundos do século passado estranhamente
pareciam muito próximos. “E, se admitir-mos que não há uma continuidade, mas
sim uma sucessão de momentos, como você mesmo disse, fugiria da nossa
capacidade biológica de perceber isso. O que é um dia para Matusalém? Nada,
provavelmente. Mas para uma criança de um dia, é a vida toda dela. No século
passado, pelo que nós dois concordaríamos, eu não estava aqui, o outono não
tinha esse cheiro, e você...”
“Está falando da relatividade do tempo? Talvez, se considerarmos a relatividade
da percepção do tempo, não do tempo ele mesmo...” cortou ela, pensativa.
Sorria, enquanto pensava, de uma maneira cativante, tanto o sorriso quanto o
pensamento. “Mas ai estaríamos em outra esfera de discussão! O que pensar sobre
o tempo, ele mesmo?”
“Uma mais interessante, provavelmente. O tempo? Uma
grandeza, talvez, como você propôs. Uma linearidade que nos assegura um ponto
de referência para nós agarrarmos e nos mantermos minimamente sãos.” Continuei,
sem muito ardor.
“Não! Não! Justamente! Não acredito que o tempo seja uma linearidade! Como pode
ser uma linearidade se o agora não é agora, e o passado, não sendo o agora,
pode ser uma concepção abstrata da minha mente doentia? O futuro, então! O que
falar de algo que não existe, nem nunca vai existir? Seria “o Futuro” o
unicórnio de Flusser? O que existe é o agora. Somente o agora!” Laís agora ria
abertamente, se deliciando com aquele debate. “Nada é igual ao agora! Tudo
muda, mudou, a não ser que minha mente doentia tenha mudado, e as coisas sejam
estáticas no tempo e espaço. A nossa percepção limitada, ao invés de ver tudo
parado, como realmente é, vê os movimento imaginários, os deslocamentos
imaginários.”
“Mas, se nada é igual o que era antes, se o movimento é uma
falsa ilusão da nossa percepção limitada e da sua mente doentia, o que há
realmente, porque há mudança, não digo o ato de mudar em si, esse você já
explicou, mas na mudança de fato. Como eu posso estar pensando agora diferente
há quatro cenas do Grande Cineasta atrás? O que provocaria isso? Como poderia
coexistir duas varandas, a de agora e a de dez segundos atrás?” perguntei,
rindo. Porque eu sempre caio nessas conversas dela? Céus!
A pergunta a pegou desprevenida. Ela olhou de novo para a
árvore em frente. Como eu já expliquei, a varanda ficava metros acima de
passarinhos metros abaixo dela. A varanda também dava para uma árvore, para
quem um dia era nada, em sua percepção relativa e arvoresca. Esperei alguns
momentos, e o Grande Cineasta, cansado de esperar, cortou um pouco desses
momentos e logo colocou na exibição o momento que eu retomava a falar,
rapidamente, extremamente entusiasmado, completamente dominado pela conversa.
“Uma explicação possível seria que a realidade é múltipla,
não única. Não linear, mas sim pontos pluridimensionais, que se interconectam,
que seguem através de linhas que ligam momentos distintos em realidades
distintas. Uma verdadeira rede, infinita. Assim, duas realidades podem
coexistir. A realidade de cinco segundos atrás dá lugar ao agora. Assim, o que
percebemos como movimentos, na verdade é uma transição da estática de um
realidade à outra. O que não invalida a possibilidade de um caminho diferente,
ou da coexistência de diversos cursos seguindo seus caminhos distintos, podendo
coincidir em diversas realidades diferentes. Talvez isso explica aqueles
instantes de dejá vu! O que acontece
é que um fluxo existencial, por falta de melhor palavra, coincide de se
encontrar numa mesma realidade com outro fluxo existencial. As memórias doentias
e ilusórias se condensam, e uma realidade atual pode já ter sido ‘visitada’, o
que levaria ao outro fluxo uma estranha sensação de já ter vivenciado o
momento.” Tive de parar um pouco para tomar fôlego, e durante esse momento,
olhei para ela. Laís me olhava, fascinada, e ria, mostrando os dentes brancos e
me fazendo rir também.
“Você pode estar certo, é realmente uma boa teoria. Isso explicaria a dualidade
dos fatos. Se explode um vulcão, há de ter, ao mínimo, duas realidades
diferentes: uma em que o vulcão explode, e outra que ele não explode! Os dois
fatos existem, e aconteceram, estão em realidades diferentes. E, concordo
contigo! As realidades, portanto, não são ‘paralelas’, como muitos gostam de
afirmar. As realidades possuem n interseções, o tempo todo se cruzam, por
dentre os mais diversos momentos. O espaço seria, portanto individualmente
diferente, mas, ao todo, todas as possibilidades se somam e formam um espaço
puro, completo, e em constante adição, pois as possibilidades aumentam. Não há
mobilidade nos momentos per se, mas há uma mobilidade de criação e
inter-momentânea. Isso nos abre uma porta de possibilidades, por exemplo:
poderia um fluxo inverter o caminho? Como iríamos perceber se isso realmente
acontecesse?” disse, me apertando no coração, com aqueles olhos de coruja,
aquela mãozinha a mexer no próprio braço, aquele sorriso a mexer com meu peito.
“E não precisamos parar por ai!” continuou “E se pensarmos
que cada ser é um universo, uma interpretação própria do todo? E, onde estaria
essa interpretação? Acima de tudo e todos, já que observa de longe? Ou
englobada nessa mesma rede? Tudo o que você cria na sua mente, está no nosso
fluxo existencial? Ou será que seus pensamentos criam distintas realidades
também? Será que ao escrever algo você cria uma realidade, ou um fluxo de
existência diferente do nosso, este compartilhado agora? E ao ler? Outro fluxo
é criado? Outras realidades se tornam possíveis, outros caminhos? E ao falar? E
ao escutar?”
Assombrados com tamanha magnitude, com tamanhas realidades
coexistindo, e pensando que simplesmente pensar nisso já deveria ter aberto
novos fluxos, novos momentos, nos olhamos. Olhei para aqueles olhões de coruja.
Olhei para aqueles cabelos negros, grandes, para aquele nariz com uma pintinha
charmosa no centro. Algo quente cresceu em mim. Talvez o Grande Cineasta
quisesse mudar algo, por fim. Talvez um fluxo diferente estivesse coexistindo
no tempo-espaço, naquele exato momento.
“Sim, sim. Talvez, na verdade, sejamos só um escrito de alguém,
algum conto ou texto mal escrito de um idiota qualquer. E que nosso fluxo foi
iniciado por esse mesmo idiota, momentos atrás, não milhares de anos antes,
como nós pensávamos.” Eu disse isso com uma voz estranhamente embargada. Ela me
olhou de novo, estranhando o tom. Ficou surpresa quando lhe segurei os braços,
e lhe puxei para perto e para perto de mim.
“Então, talvez, sejamos só um fluxo existencial de um cara que quer mudar a sua
realidade, sua própria. Talvez ele tenha nos criado para fazer um trabalho
estranho pedido para faculdade, por algum professor estranho que tenha pedido
um trabalho desse tipo, mas não acredito nisso...” ela me olhava confusa, ao
mesmo tempo, estava tensa, e arfava, em expectativa. Me aproximei com a cabeça,
decidido.
“O que você está fazendo?” perguntou-me, entregue, finalmente,
com os olhos cheios de ternura, que sempre existira ali, nos mais diversos
fluxos existenciais que Laís aparece, ou aparecerá, a ternura que eu tanto
queria, o vidro, não mais o espelho. Ela me lançou um sorriso maravilhoso, e
molhou os lábios, na expectativa.
“Estou provavelmente consertando a cagada que nosso possível criador-de-fluxo
tenha feito. Estou criando uma realidade que ele infelizmente não transitou.
Estou indo para um momento em que ele não conseguiu, ou não pôde, ir....”
Porque esse texto tinha de ser postado em algum lugar que não o Tibiabr :3
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