O velho suspirou, deitado no leito hospitalar. Já era de
noite, e ele sentia dores por todo seu corpo. Não conseguia respirar direito,
com aqueles tubos no seu nariz. Incomodava-se com o barulho das geringonças
médicas, que impediam que dormisse ou relaxasse. Resmungou algo, que nem ele
conseguiria identificar o que era. Estava cansado. O quarto estava deserto,
como era de se esperar.
Claro que a
enfermeira apareceria a qualquer momento, desde que apertasse o botão específico.
Como tudo na sua vida, era só apertar um botão específico, ligar para um número
específico, falar uma palavra específica, fazer um gesto específico. E todos vinham
até a ele. Tudo que queria, tudo que achava que queria.
Nem tudo,
talvez. Agora, por exemplo, quando suspirava, raquítico, esquelético, enfiado
naquela ridícula camisola de hospital, gostaria de estar em sua casa, no seu
sofá, perto da sua janela, ouvindo o barulho da chuva bater no vidro. Ter em
mãos seus amados livros, um bom copo de vinho na mesinha a sua frente.
Fazia
quanto tempo que não lia um bom livro, sentado, perto da janela, com a chuva
batendo na mesma, enquanto bebia seus vinhos caros? Não conseguia lembrar. Anos,
talvez. Afinal, quanto tempo fazia que estava internado? Horas... não! Dias,
sim, com toda certeza, quantos? Oh, muitos, muitos. Semanas? Ou meses.. Não se lembrava agora . Um
desespero acometeu o velho moribundo. Agora pareciam anos, anos trancafiado
naquele quarto branco. Porque branco? Afinal, detestava essa cor. Branco era
uma cor feia, vazia, sem sentido.
Ora, então
era esse propósito! O quarto era branco, sugava seus sentidos, suas lembranças.
Afinal, tinha ele mesmo uma cadeira perto da janela, onde a chuva batia
docemente, lugar perfeito para uma leitura acompanhada de um bom vinho? Por
mais que tentasse, não se lembrava do gosto da bebida. Gostava de um sabor mais
amargo, não? Salivou, fingindo inutilmente por segundos estar degustando seu
amado vinho. Resmungou de novo. O gosto era de saliva fedorenta e seca,
acompanhada com catarro. É, não era seu vinho. Não se lembrava do gosto da
bebida. Não se lembrava da marca do seu vinho preferido, nem do país de origem
do mesmo. Definitivamente, ele não bebia vinho na confortável poltrona junto a
janela onde a chuva batia, lugar perfeito para ler um livro. Talvez não
gostasse de vinhos, no final das contas.
Mas, ah! Os
livros, como eram magníficos! Romances russos e ingleses ao lado de tragédias
gregas. Ensaios poéticos e filosóficos se amontoavam na grande estante de
madeira que se impunha na sala de estar, onde ficava a bela e confortável
poltrona. Seus amados livros de capa dura, com as inúmeras folhas, já amarelas
e com o cheiro específico de livros. Como era o cheiro mesmo? Algo de mofo,
misturado com os cheiros específicos que só seus livros tinham. Ah, como era...
como era? Mais uma vez, o velho tremeu, horrorizado. Não conseguia imaginar o
cheiro dos seus livros. Inspirou fundo, mas o fedor do hospital meticulosamente
limpo quase o fez vomitar. Talvez... talvez se visualizasse as páginas dos
livros que tanto amara...
Isso! O
rosto caquético se abriu num sorriso sofrido, quando velhas páginas começaram a
se formar. As letras em tinta preta se destacando, formando palavras e
parágrafos. Tentou se fixar em algumas palavras, mas elas estavam borradas.
Irritado, forçou a imaginação. As palavras começaram a se formar e entrar em
ordem:
“Primeira Noite
Era uma noite
maravilhosa, uma noite tal como só é possível quando somos jovens, caro leitor.
O céu desde bem cedo. Começou irritadiça e caprichosa? Petersburgo Niévski!...”
Chocado com a súbita ruptura da
linha de raciocínio, o doente abriu os olhos, encarando o teto mais uma vez
branco. Ele tentara ver o livro que mais gostava, mas não conseguia se lembrar
nem da primeira página. Nem do título do livro! Oh, céus! Como é que se chamava
mesmo? Tivera ele realmente lido inúmeros livros? Ou, será que era mais uma
peça que sua mente lhe pregava? Não lembrava mais de capas, de títulos, das
frases marcantes, das personagens. Não se lembrava de nada. Fechou os olhos,
consternado. Não queria ver mais aquele maldito teto sem teias ou fissuras. Ou
será que realmente existiam teias? Todos os tetos não eram malditamente brancos
e lisos, simétricos, perfeitos? Será que não eram também invenções da sua
imaginação, assim como os romances?
Pelo visto,
ele não lia sentado na sua confortável cadeira a beira de uma janela, onde a
chuva batia. Pena, seria um bom lugar para ler livros. Se ele tivesse livros.
Afinal, a cadeira era ricamente estofada, macia como... como... como o que? O
velho se remexeu, soltando mais um gemido. Não encontrava conforto naquela cama
de hospital, não conseguia ficar sem dor. Não conseguia relaxar. Teria ele uma
vez relaxado? Ou sempre fora assim, alquebrado, mirrado, tenso, dolorido? Como
era ficar relaxado? Encrespou a boca e começou a duvidar da sua sanidade,
murmurando pequenas coisas sem sentido. Apenas para escutá-las.
Pensou em
tocar o botão ao lado da sua cama. Chamar a enfermeira para lhe contar sobre
sua loucura? Não. Melhor seria chamar a enfermeira para que lhe desse algo para
dormir. Ela não daria, pensou logo depois, sem nenhuma razão. Apenas sabia que
não lhe daria. Assim como sabia que não existiam vinhos ou cadeiras. Olhou para
o botão vermelho, perto dos seus dedos. Talvez pedisse para ela um remédio
fatal, para morrer logo, e parar com esses pensamentos absurdos de que existia
algo que se chamassem livros ou fissuras. Maldição, o que diabos eram aranhas e
teias? Mas provavelmente ela também se negaria a matá-lo. Teria de fazer isso
sozinho. Como? Se desligasse os aparelhos, os irritantes monstrinhos que
apitavam, eles iriam dedurá-lo para a malvada enfermeira. Tremeu de medo.
“A Janela!
Eu posso me tacar pela janela!” pensou, olhando para a parede oposta do cômodo,
onde estaria a janela. Para sua surpresa, a parede era branca, lisa, sem
fissuras ou teias, ou livros. Nenhum sinal de janela, o que quer que isso
fosse. O velho tossiu. Agora tinha certeza que a enfermeira iria se apiedar dele.
Talvez... talvez os monstrinhos não apitassem, não é? Se pedisse para eles? Oh,
eles não iriam querer se responsabilizar pela morte, os xexelentos! Ora, mas a
enfermeira era boazinha! Com toda a certeza que ela iria fazer o que pedisse.
Foi com um pequeno sorriso nos lábios velhos e rachados que apertou o botão
vermelho, fechando os olhos e respirando fracamente.
A
Enfermeira acordou, com seu bip tocando. Reprimiu um grande bocejo e esfregou
os olhos. O paciente 3 estava chamando. Incomum. Normalmente o paciente três
não dava problemas, só dormia, ou resmungava sozinho o tempo todo. Preocupada,
foi andando a passos largos até o quarto do paciente. Este estava deitado em
sua cama, com o cobertor branco puxado até a cabeça, cobrindo o corpo magro e
deixando só a cabeça aparecer. O velho estava sorrindo, com os olhos cheios de
lágrimas. Suas mãos enrugadas se agarravam aos lençóis de forma espantosamente
forte. Parecia respirar fundo várias vezes.
- O senhor está bem? – perguntou, profissionalmente, a
enfermeira
- Sim, minha dama, agora estou, assaz bem, obrigado– falou o
doente, de forma leve e alegre.
- O senhor tinha me chamado... – resmungou a mulher, num tom
de acusação
- Me desculpe, perdoe-me – suplicou o velho, começando a
verter lágrimas
- Não tem problemas, durma bem, senhor, se precisar de algo
é só apertar o botão – falou, hesitante e constrangida, a enfermeira, ao ver o
velho chorar, saindo do quarto, fechando a porta atrás de si. Nem percebera
que, no pequeno tempo que deixara a porta aberta, um cheiro entrara no quarto.
Nos segundos que deixara a porta aberta, um som invadira mansamente o recinto.
Cheiro e som esses que deram uma certeza ao velho. Ele estava vivo.
-Maldita chuva que não para – resmungou a mulher, voltando
para seu quarto.