domingo, 22 de novembro de 2015

Ode a Norma Regina

Aos hipocondríacos apaixonados...

Ode a Norma Regina


Na escuridão que a noite derrama
Entre meus intensos gritos de dor
Clamo por ti, minha dama
Suplico por ti, meu amor

Tua redonda face,
Linda, a me fitar
Provoca o nosso enlace,
Provoca o meu amar

Pequena dama pálida amada,
Te tomo com sofreguidão,
A calma por ti me dada
Só aumenta minha paixão

Cura-me de meus males,
Sana-me a mente,
Não preciso que fales,
Quero ser seu paciente

Meu corpo febril ardente,
Precisa do teu, menina
Precisa do teu torpor clemente
Precisa de ti, Norma Regina

Tornas claras coisas difusas
De qualquer forma que me apeteça,
És tu, oh musa das musas
Que cura minha dor de cabeça!

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Chuva

O velho suspirou, deitado no leito hospitalar. Já era de noite, e ele sentia dores por todo seu corpo. Não conseguia respirar direito, com aqueles tubos no seu nariz. Incomodava-se com o barulho das geringonças médicas, que impediam que dormisse ou relaxasse. Resmungou algo, que nem ele conseguiria identificar o que era. Estava cansado. O quarto estava deserto, como era de se esperar.

Claro que a enfermeira apareceria a qualquer momento, desde que apertasse o botão específico. Como tudo na sua vida, era só apertar um botão específico, ligar para um número específico, falar uma palavra específica, fazer um gesto específico. E todos vinham até a ele. Tudo que queria, tudo que achava que queria.

Nem tudo, talvez. Agora, por exemplo, quando suspirava, raquítico, esquelético, enfiado naquela ridícula camisola de hospital, gostaria de estar em sua casa, no seu sofá, perto da sua janela, ouvindo o barulho da chuva bater no vidro. Ter em mãos seus amados livros, um bom copo de vinho na mesinha a sua frente.

Fazia quanto tempo que não lia um bom livro, sentado, perto da janela, com a chuva batendo na mesma, enquanto bebia seus vinhos caros? Não conseguia lembrar. Anos, talvez. Afinal, quanto tempo fazia que estava internado? Horas... não! Dias, sim, com toda certeza, quantos? Oh, muitos, muitos.  Semanas? Ou meses.. Não se lembrava agora . Um desespero acometeu o velho moribundo. Agora pareciam anos, anos trancafiado naquele quarto branco. Porque branco? Afinal, detestava essa cor. Branco era uma cor feia, vazia, sem sentido.

Ora, então era esse propósito! O quarto era branco, sugava seus sentidos, suas lembranças. Afinal, tinha ele mesmo uma cadeira perto da janela, onde a chuva batia docemente, lugar perfeito para uma leitura acompanhada de um bom vinho? Por mais que tentasse, não se lembrava do gosto da bebida. Gostava de um sabor mais amargo, não? Salivou, fingindo inutilmente por segundos estar degustando seu amado vinho. Resmungou de novo. O gosto era de saliva fedorenta e seca, acompanhada com catarro. É, não era seu vinho. Não se lembrava do gosto da bebida. Não se lembrava da marca do seu vinho preferido, nem do país de origem do mesmo. Definitivamente, ele não bebia vinho na confortável poltrona junto a janela onde a chuva batia, lugar perfeito para ler um livro. Talvez não gostasse de vinhos, no final das contas.

Mas, ah! Os livros, como eram magníficos! Romances russos e ingleses ao lado de tragédias gregas. Ensaios poéticos e filosóficos se amontoavam na grande estante de madeira que se impunha na sala de estar, onde ficava a bela e confortável poltrona. Seus amados livros de capa dura, com as inúmeras folhas, já amarelas e com o cheiro específico de livros. Como era o cheiro mesmo? Algo de mofo, misturado com os cheiros específicos que só seus livros tinham. Ah, como era... como era? Mais uma vez, o velho tremeu, horrorizado. Não conseguia imaginar o cheiro dos seus livros. Inspirou fundo, mas o fedor do hospital meticulosamente limpo quase o fez vomitar. Talvez... talvez se visualizasse as páginas dos livros que tanto amara...

Isso! O rosto caquético se abriu num sorriso sofrido, quando velhas páginas começaram a se formar. As letras em tinta preta se destacando, formando palavras e parágrafos. Tentou se fixar em algumas palavras, mas elas estavam borradas. Irritado, forçou a imaginação. As palavras começaram a se formar e entrar em ordem: 
“Primeira Noite



 Era uma noite maravilhosa, uma noite tal como só é possível quando somos jovens, caro leitor. O céu desde bem cedo. Começou irritadiça e caprichosa? Petersburgo Niévski!...”

Chocado com a súbita ruptura da linha de raciocínio, o doente abriu os olhos, encarando o teto mais uma vez branco. Ele tentara ver o livro que mais gostava, mas não conseguia se lembrar nem da primeira página. Nem do título do livro! Oh, céus! Como é que se chamava mesmo? Tivera ele realmente lido inúmeros livros? Ou, será que era mais uma peça que sua mente lhe pregava? Não lembrava mais de capas, de títulos, das frases marcantes, das personagens. Não se lembrava de nada. Fechou os olhos, consternado. Não queria ver mais aquele maldito teto sem teias ou fissuras. Ou será que realmente existiam teias? Todos os tetos não eram malditamente brancos e lisos, simétricos, perfeitos? Será que não eram também invenções da sua imaginação, assim como os romances?

Pelo visto, ele não lia sentado na sua confortável cadeira a beira de uma janela, onde a chuva batia. Pena, seria um bom lugar para ler livros. Se ele tivesse livros. Afinal, a cadeira era ricamente estofada, macia como... como... como o que? O velho se remexeu, soltando mais um gemido. Não encontrava conforto naquela cama de hospital, não conseguia ficar sem dor. Não conseguia relaxar. Teria ele uma vez relaxado? Ou sempre fora assim, alquebrado, mirrado, tenso, dolorido? Como era ficar relaxado? Encrespou a boca e começou a duvidar da sua sanidade, murmurando pequenas coisas sem sentido. Apenas para escutá-las.

Pensou em tocar o botão ao lado da sua cama. Chamar a enfermeira para lhe contar sobre sua loucura? Não. Melhor seria chamar a enfermeira para que lhe desse algo para dormir. Ela não daria, pensou logo depois, sem nenhuma razão. Apenas sabia que não lhe daria. Assim como sabia que não existiam vinhos ou cadeiras. Olhou para o botão vermelho, perto dos seus dedos. Talvez pedisse para ela um remédio fatal, para morrer logo, e parar com esses pensamentos absurdos de que existia algo que se chamassem livros ou fissuras. Maldição, o que diabos eram aranhas e teias? Mas provavelmente ela também se negaria a matá-lo. Teria de fazer isso sozinho. Como? Se desligasse os aparelhos, os irritantes monstrinhos que apitavam, eles iriam dedurá-lo para a malvada enfermeira. Tremeu de medo.

“A Janela! Eu posso me tacar pela janela!” pensou, olhando para a parede oposta do cômodo, onde estaria a janela. Para sua surpresa, a parede era branca, lisa, sem fissuras ou teias, ou livros. Nenhum sinal de janela, o que quer que isso fosse. O velho tossiu. Agora tinha certeza que a enfermeira iria se apiedar dele. Talvez... talvez os monstrinhos não apitassem, não é? Se pedisse para eles? Oh, eles não iriam querer se responsabilizar pela morte, os xexelentos! Ora, mas a enfermeira era boazinha! Com toda a certeza que ela iria fazer o que pedisse. Foi com um pequeno sorriso nos lábios velhos e rachados que apertou o botão vermelho, fechando os olhos e respirando fracamente.

A Enfermeira acordou, com seu bip tocando. Reprimiu um grande bocejo e esfregou os olhos. O paciente 3 estava chamando. Incomum. Normalmente o paciente três não dava problemas, só dormia, ou resmungava sozinho o tempo todo. Preocupada, foi andando a passos largos até o quarto do paciente. Este estava deitado em sua cama, com o cobertor branco puxado até a cabeça, cobrindo o corpo magro e deixando só a cabeça aparecer. O velho estava sorrindo, com os olhos cheios de lágrimas. Suas mãos enrugadas se agarravam aos lençóis de forma espantosamente forte. Parecia respirar fundo várias vezes.

- O senhor está bem? – perguntou, profissionalmente, a enfermeira
- Sim, minha dama, agora estou, assaz bem, obrigado– falou o doente, de forma leve e alegre.
- O senhor tinha me chamado... – resmungou a mulher, num tom de acusação
- Me desculpe, perdoe-me – suplicou o velho, começando a verter lágrimas

- Não tem problemas, durma bem, senhor, se precisar de algo é só apertar o botão – falou, hesitante e constrangida, a enfermeira, ao ver o velho chorar, saindo do quarto, fechando a porta atrás de si. Nem percebera que, no pequeno tempo que deixara a porta aberta, um cheiro entrara no quarto. Nos segundos que deixara a porta aberta, um som invadira mansamente o recinto. Cheiro e som esses que deram uma certeza ao velho. Ele estava vivo.


-Maldita chuva que não para – resmungou a mulher, voltando para seu quarto.

domingo, 25 de outubro de 2015

Discutindo com Laís

Discutindo com Laís

Lembro-me muito bem quando eu encontrei Laís pela primeira vez. Lembro-me muito bem porque toda vez que encontro Laís, ela me lança um olhar divertido, finge raiva e depois arregala aqueles dois olhões de coruja para mim. Depois solta um sorriso manso, ou afetado, depende se estiver chovendo ou ensolarado, segura meu braço com força e me puxa para perto e para longe. “Puxa como você é chato, puxa como você é chato” diz com sua vozinha, me apertando e balançando a cabeça, de maneira divertida.

Encontrei Laís dos olhões de coruja numa livraria. Olhava divertida para as pessoas que passavam e não a notavam, pequenina, num cantinho, só olhando as pessoas que não a notavam. Pareceu embaraçadamente surpresa quando a encontrei em seu pequeno deleite especial. Arregalou-me os olhos de tal maneira que sorri. Estava eu procurando um livro sobre algum assunto desinteressante, como Laís explicou-me, logo depois que eu respondi a pergunta do que você veio fazer aqui nesse meu cantinho de olhar pessoas?. Desinteressante e chato. Repetitivo, quando tentei lhe explicar as qualidades do autor, Tolstoi já tinha escrito sobre, e muito melhor, reiterou, batendo seus pezinhos, impaciente. Apertou-me o braço, com força, e me puxou para perto e para longe. “Puxa como você é chato, puxa como você é chato”, disse, finalmente. Mas depois deu um sorriso e me perguntou se eu já tinha visto alguma borboleta hoje, mas como não se hoje o jardim da praça está cheio?, após minha negativa. Parou um pouco para pensar, soltando meu braço, e suspirou. “Como você conseguiu me ver, observando as pessoas, e não conseguiu ver nenhuma borboleta? Você deve ser meio cego, deveria procurar um oculista”. Foi assim que conheci Laís.

Depois disso, a encontro diversas vezes por ai, de repente. Tentei muitas vezes, frustrado, entrar em contato com ela por outros meios além do físico presencial. Mas ela sempre se nega a conversar comigo quando não consegue me arregalar os olhões de coruja. Ignora-me, então, em todos os locais ou meios em que nós dois não estejamos parados, olhando um para o outro, e ela aperte o meu braço e me sorria, e eu sorrio para ela de volta e ela vem, e me puxa para perto e para longe. As vezes tenho imensa raiva dela por isso, por não querer me ver outros dias, em outros lugares, com outras pessoas. Porque não vamos com Bruno e Fernanda para o cinema juntos, Laisinha?, digo, mostrando o novo filme em cartaz. Porque você é tão bobão e sempre acha que eu não gosto de você?, me responde, provocativa, mudando de assunto logo em seguida. Porque você nunca me vê com os outros? Porque só me vê sozinho?, você deveria estar feliz por eu te ver uma vez que seja, seu chato!. Eu queria te ver mais..., digo depois de um silêncio desconfortável, eu gosto de te ver, gosto de você. Ela para, vira e me dá um olhar assustado, misturado com certo desconforto de mesma origem do silêncio desconfortável, Eu também gosto de você, diz, e não foge do meu abraço carinhoso, mas foge dos meus olhos curiosos.

Um dia, mais cinzento que muitos, eu estava especialmente insistente. Ela olhava para as árvores, estávamos em uma varanda bem aberta, dando para árvores e para o todo especial cheiro de ar do outono carioca. E seus olhos de coruja passeavam pelo verde como que procurando algo. Não tinha falado mais que poucas palavras, escutando o longo discurso meu, remoído, cheio de só queria te entender melhor, as vezes acho que você poderia se abrir mais, junto com uns o que há com você hoje?, e ocasionalmente uns suspiros e o discurso morria sem avi...

“Porque você insiste tanto em mim?” perguntou finalmente, evitando meus olhos inquisidores espanhóis. Entalou-se em mim a resposta, e não consegui falar nada por alguns minutos. Aqueles olhões de coruja, aqueles faróis negros acastanhados de onde a emoção explodia. Que medo daqueles olhos. Que medo de serem espelhos, e não vidros translúcidos. A tensão ficou mais forte, e ela, ao contrário de outros dias passados, não mudou de assunto, tampouco falou sobre o passarinho a cantar, metros abaixo, já que a varanda era de um prédio alto, metros acima de passarinhos a cantar. Não, Laís aquele dia não me apertou o braço, me apertou o coração. Céus, aqueles olhões de coruja, aquela boca tremida sem a certeza, e a expectativa. Séculos se passaram, e ela desviou o olhar, virando para o ar outonal.


“O que você acha do tempo?” perguntou, finalmente e vendo minha decepção, sendo a boa observadora de sempre, que bonita Laisinha, acrescentou “Não, não o clima, ou a temperatura, ou, mas o tempo, o tempo!” afirmou, com sua energia contagiante. Mas eu não estava a fim de discutir o tempo aquele dia, o que a fez começar, naturalmente, a falar sem parar sobre o assunto.

“Imagina, imagina! Imagina se, na verdade, não existe tempo? Não existe o passado, não existe o futuro. Não existe nada, e nossas memórias são só fantasias da nossa mente? Na verdade, o que há são momentos. Como fotografias. Momentos que vão e vêm. Mas, assim como no cinema, não há real continuidade, não há movimento. O movimento é uma mera ilusão da nossa incapacidade biológica de ver mais de 24 quadros por segundo, devido a tal persistência retiniana. E, como no cinema, a filmagem pode ser editada, cortada, na pós produção, nossa memória também o pode. O que seria o tempo, então? Uma medição que o Grande Cineasta usa para colocar seus momentos? Uma criação nossa, para evidenciar a diferença entre um momento ou outro? Mas, como saber que um segundo de agora, na realidade, não é um segundo posterior de amanhã, ou é um segundo do século passado?” terminou, olhando para mim, e brilhando os olhos, esquecendo dos segundos do século passado que tinham acabado de passar, nos quais eu olhava seus olhos de coruja e sua mãozinha apertava não meu braço, mas meu coração. 



“Se for isso, espero que o Grande Cineasta não seja um Tarantino” respondi, amargo. Aqueles segundos do século passado estranhamente pareciam muito próximos. “E, se admitir-mos que não há uma continuidade, mas sim uma sucessão de momentos, como você mesmo disse, fugiria da nossa capacidade biológica de perceber isso. O que é um dia para Matusalém? Nada, provavelmente. Mas para uma criança de um dia, é a vida toda dela. No século passado, pelo que nós dois concordaríamos, eu não estava aqui, o outono não tinha esse cheiro, e você...”

“Está falando da relatividade do tempo? Talvez, se considerarmos a relatividade da percepção do tempo, não do tempo ele mesmo...” cortou ela, pensativa. Sorria, enquanto pensava, de uma maneira cativante, tanto o sorriso quanto o pensamento. “Mas ai estaríamos em outra esfera de discussão! O que pensar sobre o tempo, ele mesmo?”



“Uma mais interessante, provavelmente. O tempo? Uma grandeza, talvez, como você propôs. Uma linearidade que nos assegura um ponto de referência para nós agarrarmos e nos mantermos minimamente sãos.” Continuei, sem muito ardor.

“Não! Não! Justamente! Não acredito que o tempo seja uma linearidade! Como pode ser uma linearidade se o agora não é agora, e o passado, não sendo o agora, pode ser uma concepção abstrata da minha mente doentia? O futuro, então! O que falar de algo que não existe, nem nunca vai existir? Seria “o Futuro” o unicórnio de Flusser? O que existe é o agora. Somente o agora!” Laís agora ria abertamente, se deliciando com aquele debate. “Nada é igual ao agora! Tudo muda, mudou, a não ser que minha mente doentia tenha mudado, e as coisas sejam estáticas no tempo e espaço. A nossa percepção limitada, ao invés de ver tudo parado, como realmente é, vê os movimento imaginários, os deslocamentos imaginários.”


“Mas, se nada é igual o que era antes, se o movimento é uma falsa ilusão da nossa percepção limitada e da sua mente doentia, o que há realmente, porque há mudança, não digo o ato de mudar em si, esse você já explicou, mas na mudança de fato. Como eu posso estar pensando agora diferente há quatro cenas do Grande Cineasta atrás? O que provocaria isso? Como poderia coexistir duas varandas, a de agora e a de dez segundos atrás?” perguntei, rindo. Porque eu sempre caio nessas conversas dela? Céus!

A pergunta a pegou desprevenida. Ela olhou de novo para a árvore em frente. Como eu já expliquei, a varanda ficava metros acima de passarinhos metros abaixo dela. A varanda também dava para uma árvore, para quem um dia era nada, em sua percepção relativa e arvoresca. Esperei alguns momentos, e o Grande Cineasta, cansado de esperar, cortou um pouco desses momentos e logo colocou na exibição o momento que eu retomava a falar, rapidamente, extremamente entusiasmado, completamente dominado pela conversa.

“Uma explicação possível seria que a realidade é múltipla, não única. Não linear, mas sim pontos pluridimensionais, que se interconectam, que seguem através de linhas que ligam momentos distintos em realidades distintas. Uma verdadeira rede, infinita. Assim, duas realidades podem coexistir. A realidade de cinco segundos atrás dá lugar ao agora. Assim, o que percebemos como movimentos, na verdade é uma transição da estática de um realidade à outra. O que não invalida a possibilidade de um caminho diferente, ou da coexistência de diversos cursos seguindo seus caminhos distintos, podendo coincidir em diversas realidades diferentes. Talvez isso explica aqueles instantes de dejá vu! O que acontece é que um fluxo existencial, por falta de melhor palavra, coincide de se encontrar numa mesma realidade com outro fluxo existencial. As memórias doentias e ilusórias se condensam, e uma realidade atual pode já ter sido ‘visitada’, o que levaria ao outro fluxo uma estranha sensação de já ter vivenciado o momento.” Tive de parar um pouco para tomar fôlego, e durante esse momento, olhei para ela. Laís me olhava, fascinada, e ria, mostrando os dentes brancos e me fazendo rir também.

“Você pode estar certo, é realmente uma boa teoria. Isso explicaria a dualidade dos fatos. Se explode um vulcão, há de ter, ao mínimo, duas realidades diferentes: uma em que o vulcão explode, e outra que ele não explode! Os dois fatos existem, e aconteceram, estão em realidades diferentes. E, concordo contigo! As realidades, portanto, não são ‘paralelas’, como muitos gostam de afirmar. As realidades possuem n interseções, o tempo todo se cruzam, por dentre os mais diversos momentos. O espaço seria, portanto individualmente diferente, mas, ao todo, todas as possibilidades se somam e formam um espaço puro, completo, e em constante adição, pois as possibilidades aumentam. Não há mobilidade nos momentos per se, mas há uma mobilidade de criação e inter-momentânea. Isso nos abre uma porta de possibilidades, por exemplo: poderia um fluxo inverter o caminho? Como iríamos perceber se isso realmente acontecesse?” disse, me apertando no coração, com aqueles olhos de coruja, aquela mãozinha a mexer no próprio braço, aquele sorriso a mexer com meu peito.


“E não precisamos parar por ai!” continuou “E se pensarmos que cada ser é um universo, uma interpretação própria do todo? E, onde estaria essa interpretação? Acima de tudo e todos, já que observa de longe? Ou englobada nessa mesma rede? Tudo o que você cria na sua mente, está no nosso fluxo existencial? Ou será que seus pensamentos criam distintas realidades também? Será que ao escrever algo você cria uma realidade, ou um fluxo de existência diferente do nosso, este compartilhado agora? E ao ler? Outro fluxo é criado? Outras realidades se tornam possíveis, outros caminhos? E ao falar? E ao escutar?”

Assombrados com tamanha magnitude, com tamanhas realidades coexistindo, e pensando que simplesmente pensar nisso já deveria ter aberto novos fluxos, novos momentos, nos olhamos. Olhei para aqueles olhões de coruja. Olhei para aqueles cabelos negros, grandes, para aquele nariz com uma pintinha charmosa no centro. Algo quente cresceu em mim. Talvez o Grande Cineasta quisesse mudar algo, por fim. Talvez um fluxo diferente estivesse coexistindo no tempo-espaço, naquele exato momento.

“Sim, sim. Talvez, na verdade, sejamos só um escrito de alguém, algum conto ou texto mal escrito de um idiota qualquer. E que nosso fluxo foi iniciado por esse mesmo idiota, momentos atrás, não milhares de anos antes, como nós pensávamos.” Eu disse isso com uma voz estranhamente embargada. Ela me olhou de novo, estranhando o tom. Ficou surpresa quando lhe segurei os braços, e lhe puxei para perto e para perto de mim.

“Então, talvez, sejamos só um fluxo existencial de um cara que quer mudar a sua realidade, sua própria. Talvez ele tenha nos criado para fazer um trabalho estranho pedido para faculdade, por algum professor estranho que tenha pedido um trabalho desse tipo, mas não acredito nisso...” ela me olhava confusa, ao mesmo tempo, estava tensa, e arfava, em expectativa. Me aproximei com a cabeça, decidido.



“O que você está fazendo?” perguntou-me, entregue, finalmente, com os olhos cheios de ternura, que sempre existira ali, nos mais diversos fluxos existenciais que Laís aparece, ou aparecerá, a ternura que eu tanto queria, o vidro, não mais o espelho. Ela me lançou um sorriso maravilhoso, e molhou os lábios, na expectativa.

“Estou provavelmente consertando a cagada que nosso possível criador-de-fluxo tenha feito. Estou criando uma realidade que ele infelizmente não transitou. Estou indo para um momento em que ele não conseguiu, ou não pôde, ir....”



Porque esse texto tinha de ser postado em algum lugar que não o Tibiabr :3